Ian Aragão
6 min readApr 5, 2020

Bestas de si, bestas de outros e bestas encobertas de pele humana: pequenas marcas extraídas de “Cães” por Julia Grilo.

Alguém um dia me dissera que o filme da Disney, a Bela e A Fera, era um filme sobre síndrome de Estocolmo. Algo me incomodou nessa afirmação, porque não se referia ao conto clássico, que é uma clara obra sobre adequação ao casamento. De como as meninas deveriam se portar e que com o tempo o “monstro” na qual elas haviam se casado se revelaria em “príncipe”. A crítica dizia respeito ao retrato fabuloso da Disney, que eliminava grande parte do discurso antigo, remontando em algo mais atualizado aos moldes de aceitabilidade da sociedade contemporânea. O meu espanto nunca foi sobre a interpretação possível da obra e sim, sobre o quanto esta interpretação era rasa.

A metamorfose parece-me um recurso recorrente em obras e geralmente ela tende a utilizar-se enquanto metáfora. Desde as mais simples fabulas de Esopo, até os romances mais elaborados como em Franz Kafka, colocar figuras animalesca ou antropomórficas tendem a querer dizer algo. Que é o caso recorrente nos musicais da Disney, um clássico moderno, readaptado para uma juventude. E nesse caso parece muito querer entender a “Fera” como uma figura adolescente. É quase um clichê figurar os anseios juvenis, o crescimento de pelos, a impulsividade, os hormônios a flor da pele com uma figura animal. Claro, porque no fim somos animais, mas animais vistos como mais requintados, quando decaímos o degrau de nossa animalidade e nos representamos enquanto bichos, é onde apresentamos a fragilidade dessa separação.

A narrativa convencional da metamorfose é em geral propor um mundo onde animais possuam nossos impulsos e temores. Nas fabulas pequenas características supostamente de uma animal se tornam a sua personalidade: a astucia da raposa, a coragem do cão, a sabedoria da coruja. A outra forma possível que vejo de representação parece essa cujo mencionava no primeiro parágrafo, do regresso humano a condição animal. O caso é que em meio a tantos clichês, essa metáfora já não estaria cansada? Ou possivelmente fácil demais? E foi exatamente o que me perguntei quando Julia Grilo me apresentou seu livro. Muito mal vendido, diga-se de passagem, na época decidi ler a obra muito mais por conhece-la do que pelo que ela parecia ser. Eu estava cansado da metáfora do animal. Lá e de volta outra vez, deitado com uma cópia digital em mãos a primeira surpresa é que o ar jovial e elegante do livro, da narrativa, estava impresso também nos seus usos metafóricos, metalinguístico. Até o caso onde meu incomodo com a leitura muito literal da metamorfose animal, que chamei anteriormente de rasa, aqui se dispunha abertamente como literal, mais que isso, se propondo assim. E de um novo espanto se fez a minha leitura de Cães.

Cafeína estava feliz, muito feliz. A humanidade havia aderido a sua pele sem exageros. A companhia de outros animais fê-la sentir-se imensamente humana; a presença deles acarretou a dissolução do que um dia lhe pareceu inadequado em si. Eu, Andréa, meus pais, todos nós então lhe soamos antihumanos, tingidos por um amadorismo cru, um amadorismo que não sabia das coisas. De que adiantava que trancássemos e destrancássemos portões, se não sabíamos revirar uma lata de lixo, se jogávamos o lixo fora? Se não tínhamos a destreza de Nia ou o charme vivaz de Babilônia? Pouco dominávamos do mapeamento das cidades — eu, por exemplo, me perdia com absurda facilidade em locais desconhecidos. Não farejávamos, não ouvíamos, dependíamos dos olhos para tudo.¹

A escrita contemporânea, disso que chamam de “pós-modernidade”, trilhou em um de seus temas a luta inconstante sobre as cargas do autor. Morto, assassinado, nunca havido, lutando contra si mesmo, decifrando a si, recolhendo aos frangalhos de sua própria psiquê, é a eterna pergunto de Foucault “o que é isto o autor?”, é a sonora expressão de Barthes “o autor está morto”, é o kantismo de de Eco, onde o texto se faz em parte daquele que o performa. Não saberia de certo apontar onde se encontra aquele que escreve, aquele que impõe sobre os signos para ser decifrado o código máximo e ser alentado como o gênio de sua criação. E a pergunta que interrogo ao escrever aqui é: onde está essa que é autora de Cães? E para a surpresa de qualquer um que leia Cães, este é, acima de tudo, um livro sobre quem escreve.

O desbotar da narrativa é construído sobre memórias de encontros e desencontros entre uma garota e sua cadela Cafeína. São duas histórias entrecortadas, onde o signo no animal é repensado. Se, nos casos que citava anteriormente o jovem se decaí em animal, a surpresa de Julia, é sobre a busca da humanidade de seu cão. A pobre cafeína sofre os dilemas jovens de vir-a-ser gente. A proposta tem uma sutileza poética, até um pouco revoltosa, de negar condições dadas e de busca. Há uma tensão imagética de negar-se enquanto animal, atributo da racionalidade humana, animais não são nossos outros.

A ideia do livro me soou em todos os momentos como uma tentativa de reimaginar a figuração humana, dotar em outro o espaço do próprio. Se no clássico usamos o animal para falar de nossos temores, medos, instintos, aqui, o animal é para negar a humanidade. Mostrar uma forja regorjeada e não pensada dessa divisa. É Cafeína que poderia se propor melhor que gente. É dos anseios do crescimento de Julia, em paralelo com o crescimento de Café. Ao cão não lhe está para ser aprendido a mutilar seu corpo, os seus instintos, neles se figuram algo melhor que si, algo para além do que o humano é capaz. É o cão que quer ser gente, para a menina que quer ser cão.

Nada disso que penso dizer é tirado do acaso, a obra tem o seu quê de ensaística e interrogativa, o que possivelmente pode ser de atrito — e não é de se espantar que o leitor discorde, porque ela nunca parece apelar ao convencimento. O texto pensa junto, é por isso que soa muito como obra de autor. Não que haja um gênio a ser descoberto, até porque o livro está trilhado nesse passadiço entre um eu e o outro eu, na abertura de suas intimidades. É honesto até demais, quando não é doloroso. É de se pensar o quanto inimista a obra o é. O recurso da juventude de nega-lo, de faze-lo como passagem de decaimento antes da maturidade, aqui é encarada de outra forma. Nunca há uma omissão dos constrangimentos, dos atritos, daquilo que povoa sua mente no mais intimo segredo. Ao contrário disso, parece muitas vezes recorrer ao acolhimento pela clareza de suas palavras. Em dado momento a palavra sorumbático apareceu na trama e ficou ecoando em minha mente. Esse retrato do “eco” é uma marca da escrita.

Se o convencimento não é uma opção, então me parece que alcançar o leitor é por outro lado. Figurar suas inseguranças, desejos e contradições de forma tão intimista é denotar as bestas de si mesmo. Aquilo que performa em seu âmago de ruim, daquilo que fere a si mesmo, ao inverso, quando as bestas estão expostas é nesse olhar reverso de encontro que que nos alcançamos, pelo que carregamos que a história se faz parecer tão viva, tão real, tão honesta.

Angular os temores não partindo de si, mas de outro, de um cão, daquele que não esperamos humanidade, é para não nos justapor com nossos afetos; eliminamos as afecções e tensões, só nos resta enxergamos nossas características desnudadas na pele de outro. É por isso que fábulas me são tão significativas, por isso que a metamorfose humana em animal sempre me pareceu tão potente em revelar-nos a nós mesmos.

Julia ainda não chegou a publicar, mas se cativados pela interesse podem achar fragmentos desse livro e de outros causos em https://medium.com/@juliagrilo ou em seu Instagram: @jupiteriza .

¹Fragmento do livro

Ian Aragão
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Written by Ian Aragão

Se eu conseguisse tornar breve e sintética a entrada em meus textos, eu não teria porquê escreve-los. (Não que tenha outro motivo)

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